Quando minha irmã nasceu, há exatos cinco anos, não fazia tanto frio como hoje. Nas duas ou três semanas que sucederam sua chegada, no entanto, um clima gélido e de temperatura negativa se fixou na cidadezinha onde vivemos. Iniciava-se mais um inverno. O universo a esperou sair do ventre materno para dar seu presente de boas-vindas: a estação que, de alguma forma, teria agora ela como ponto de partida, no dia que partilha com São João e próximo ao solstício de noite mais longa. Naqueles primeiros dias, ainda na forma de uma criatura frágil, sua presença movia e transformava os ares da casa, mesmo sem sair do berço. Horas de encantamento a observar quem há pouco abrira os olhos pela primeira vez, mas preferia mantê-los cerrados, num sono sereno que contém toda pureza. Os meses e anos que se seguiram, vê-la crescendo cada dia mais, representaram alguns dos melhores momentos da minha vida. Eu tinha apenas catorze anos, recém-feitos, e descobria o que é viver num grau semelhante ao dela. Tudo estava mudando muito rapidamente para nós dois.
Desde essa época eu já desejava catalogar sua experiência artística. Era algo que eu sempre pensava quando lembrava da minha própria infância e me deparava com algumas incertezas sobre coisas como: o primeiro filme que vi numa sala de cinema, as pessoas que foram comigo, as minhas reações diante daquilo. Eu queria que ela tivesse acesso a essas informações, mesmo que por mero título de curiosidade. Acredito que as primeiras impressões se perpetuam, ainda que seja para negá-las em fase adulta; é preciso partir de alguma base. Porém, a coisa toda é mais complicada do que eu imaginava. Crianças hoje possuem um acesso ainda maior a estímulos visuais de muitos tipos, de modo que a catalogação exata das primeiras experiências audiovisuais percam um pouco do peso. Talvez eu apenas seja um romântico incorrigível. Mas, segui observando seus primeiros passos, gostos e antipatias, e prometo tê-los bem guardado para sua posterior conferência.
Eu não me lembro quem eu era aos cinco anos. Você verá que as fases se confundem numa massa heterogênea de sentimentos, sensações e acontecimentos. Nunca sabemos de onde vem o quê. Mas sei bem quem você é, na chegada dos imensos cinco anos (que você sinaliza com as mãos cheias e um lindo sorriso no rosto). Isso não significa que já é uma menina grande, como incessantemente afirma, mas sim que está no caminho certo para um dia ser, e será. Você possui um ‘timing’ muito sagaz para o humor, e eu sei que é consciente pois reconheço a malícia esperta dos seus olhos de longe quando apronta — está nos meus olhos também. O jeito que pronuncia as palavras com manha quando deseja alguma coisa, numa bajulação (novamente, esperta) que toma qualquer um que te escute por inteiro. Seus desenhos de traços cada vez mais firmes, retratos infinitos de você, nossa família. Um intenso apreço pelas cores fortes e diversas; a fase do rosa parece ter passado, quando te pedem a preferência por cor, sai um sonoro ‘arco-íris’ de sua boca. Tudo isso te caracteriza, mas não define. Eu sei quem você é: minha irmã, parte irredutível de mim, mas eu nunca seria capaz de transmitir isso. Só você pode fazê-lo, sendo si mesma, como já faz e espero que sempre o faça.
Os filmes que aqui estão, e que quero apresentá-la nos próximos meses, são tão somente uma ponte. Podem te levar a lugares mágicos, bem como a lugar nenhum. Pontes são caminhos, mas sempre que você precisar, podem ser um abrigo para se firmar em momentos de perigo. Está tudo bem ficar no meio as vezes, isso não quer dizer que você não irá para frente. Veja, só existe o cinco porque você ficou emperrada no quatro alguma vez, assim como o cinco é um caminho incontornável para o seis. Sei que você vai entender que o processo importa tanto quanto a chegada. Se não agora, um dia, pois vou estar aqui para te lembrar. Agora, porém, tudo isso deve permanecer distante, como o cinco do quatro e do seis.
O Garoto (1921)
Tive dúvidas se esse seria o período etário ideal para te apresentar Charlie Chaplin. A verdade é que desconfio da existência de um momento certo; o difícil mesmo é achar o errado. A linguagem audiovisual de hoje, especialmente a voltada para sua idade, é repleta de estímulos que buscam impedir o tédio. Afinal, está tudo na palma da mão: milhares de vídeos em sequência a um deslizar de distância. É preciso prender a atenção do espectador, por menor que ele seja. Talvez um filme sem diálogos e sem o colorido que você tanto ama soem estranhos agora, mas prometo que será difícil largar após a sessão começar. Primeiro porque aqui está contido grande parte do que você verá de cinema em sua vida; tudo o que vem depois é uma mera apropriação, dilatação ou recusa de Chaplin. Segundo porque contém imagens em movimento filmadas com tamanha graça e espirituosidade que é impossível ser alheio a elas. E o garoto travesso que intitula o filme me lembra você, sua molecagem e companheirismo. Suas indagações complexas talvez encontrem um pouco de resposta nesse sensível retrato da vida e suas contradições.
Mary Poppins (1964)
Assim como Chaplin, Mary Poppins é algo que eu só vim conhecer depois de crescido. Lembro que quando assisti me senti bastante tocado pela narrativa da babá mágica, perfeitinha e rígida, que dá um lugar seguro a duas crianças que passam por um turbilhão de mudanças afetivas e sociais. É mesmo um mundo muito doido para se crescer dentro. De repente, palavras como banco e dinheiro são uma coisa importantíssima e você não entende o porquê. Esse filme, ao seu modo britânico, polido e atenuado, é uma peça de sentimento verdadeiro e singelo que aborda essas incongruências do crescer, e que surgem já na fase da vida em que você está. As músicas, as cores vibrantes, os desenhos animados encontrando a vida real, são coisas que ficarão para sempre em você. E o rigor passional da Sra. Poppins causará espanto e curiosidade; crianças são melhor criadas em pulsos que sabem ser, ao mesmo tempo, firmes e brandos. A reação adversa é os guarda-chuvas, que lhe terão agora outro significado. Eles alimentarão sua esperança de vê-la pairando pelos céus, indo ao seu auxílio em situações de caos. Para esses momentos, o remédio é simples: a spoonful of sugar e um encontro marcado na televisão com Julie Andrews e companhia.
As Muitas Aventuras do Ursinho Pooh (1977)
Você já conhece os dias chuvosos. Sabe que nesses dias ficamos de molho em casa, sem poder sair lá fora. Os perigos do exterior são muitos: a água, a gripe, os trovões. No entanto, talvez você ainda não saiba que esses são os melhores dias para nossa imaginação. O barulho da chuva, o vento no telhado, a interrupção na luz, são chamados à uma realidade de inventividade e interação que podemos encontrar em nós e nos outros. Acredite, os mundos são criados dessa maneira. Toda criança é Christopher Robin, e bom seria se pudéssemos continuar sendo ao crescer. Talvez este primeiro longa do personagem com Pooh, Leitão, Tigrão e muitos outros, não venha a ser sua história favorita dentre as muitas existentes sobre esse universo. Porém, aqui, a beleza melancólica típica desses filmes está contida em um estado tão puro quanto poderia ser. Permanecer no Bosque dos 100 Acres, com amigos, aventuras, comidas e risadas, quiçá possa ser uma tentação. Na verdade, você descobrirá que a graça de entrar está justamente em sair — ainda que seja para voltar e reencontrá-los, aos 99 ou 100 anos. Você não deve se preocupar com o tempo por agora, mas há uma ou outra coisa que você pode aprender sobre amizade, dias chuvosos e conforto, com o ursinho aficcionado por mel e seu melhor amigo criança. E dali criar seus próprios mundos de fantasia onde nunca chove lá fora…
Meu Amigo Totoro (1988)
Algumas coisas nós não sabemos como expressar. Outras precisamos que sejam vistas, queremos que as pessoas estejam cientes de como nos sentimos. As duas situações são válidas e não tão distantes como pode parecer. Este belíssimo filme de Miyazaki demonstra bem isso. Duas crianças abaladas com a doença da mãe precisam se habituar à mudança para uma casa no campo e que parece esconder muitos segredos estranhos. Tanto Satsuki, a mais velha, quanto Mei, a caçula, experienciam coisas que vão além do entendimento racional e emocional delas. São momentos de transformação, em que não raro o belo e o triste vão existir concomitantemente. O próprio trauma de crescer afastadas da figura materna e os amigáveis monstros que se escondem na floresta são paralelos intrínsecos. As dores e as mágicas se confundem em nós de maneira indissociável, e por vezes só nós as sentimos. Mas há também os momentos em que é preciso transbordar, como quando choramos alto por algo que nos incomoda ou gargalhamos mais alto ainda por algo que nos faz feliz. A coexistência do que nos é sensível, seja sentido dentro ou visível fora, poucas vezes adquiriu tons tão etéreos quanto em Totoro.
A Bela e a Fera (1991)
Não se escapa às princesas. Seu nome para mim sempre será Bella e, por isso, de modo natural, esta fábula de aceitação e amor verdadeiro era minha ideia para o primeiro filme de todos que você assistiria. Acabou que nunca vimos, embora eu não tenha dúvida do quanto você se encantará pelos belos vestidos, utensílios falantes e charme irretocável de um clássico transposto com maestria para a linguagem infantil. A princesa inteligente que protagoniza esse filme tem mais da autossuficiência proativa de uma Ariel do que a compassividade romântica de uma Aurora, e penso que isso condiz mais com a sua personalidade entusiástica e sentimental. O universo dessas histórias levam sua imaginação a uma realidade remota de castelos, altezas e profecias, que reestruturam o que entendemos por vida real. As duas instâncias não são pares nem próximas, mas você irá perceber que, por vezes, bebemos do que é fantasioso para seguir vivendo o prático e tiramos do que é concreto para alimentar o lúdico. Só peço que independente de como veja isso ao crescer, por favor, não deixe de alimentar as duas vias igualmente.