Dois italianos conversam
Correspondências oblíquas entre o cinema de Alice Rohrwacher e Roberto Rossellini
Tenho me pegado repetindo, por ironia ou não, a frase “não se faz filmes como antigamente”, sempre que vejo um filme, em geral do século passado, de qualidade e impacto assombrosos. Apesar do caráter mesquinho que carrega, o lema não deixa de ser uma verdade invariável. Entram os múltiplos impasses relativos. Afinal, o que são os filmes de antigamente? Unidade heterogênea e ambivalente do espaço-tempo, forma e conteúdo, ainda mais em contextos artísticos. Nem outrora se faziam filmes como outrora. A verdade é que não me pego pensando nessa frase com tamanha frequência, e sempre que a declarei (vocalizando-a ou mantendo internalizada), nunca passou de um mero deslize, uma concessão a um passado nostálgico, embelezado. Porém, nos últimos dias, tenho pensado na expressão com uma certa graça e curiosidade. Assisti, e desde então sigo digerindo, os outros filmes do senhor Roberto Rossellini protagonizados por sua então esposa, Ingrid Bergman; só tinha visto Stromboli, que já havia me marcado profundamente. Ocorreu então um caso curioso, embora não raro. Me vi pensando nesses filmes, mas acompanhados de outros mais recentes, os dirigidos pela também italiana Alice Rohrwacher.
É natural que produções de qualquer época bebam em abundância do que veio anterior à elas. É um ciclo fundamental em qualquer linguagem, a absorção e sua eventual subversão. Sendo conterrâneos então, se intensifica o processo. Conheci o cinema de Rohrwacher em 2024, por ocasião da estreia de seu mais novo longa, La Chimera, protagonizado pelo ator inglês, em alta, Josh O’Connor. A trama, curiosíssima, mistura Indiana Jones, de Spielberg, e Accattone, de Pasolini, numa simbólica história de artefatos e sentimentos soterrados, que clamam para subir à superfície. Revelo aqui um problema do qual não consigo me curar: sempre que me interesso pelo cinema ou literatura de algum autor, procuro começar pelo começo, entender seus meandros num falso senso evolutivo. Já discuti isso em maiores detalhes no texto sobre Travessia de Verão. Assim, quando me interessei pelo filme, que estreou em Cannes no ano passado, fui correndo ver o que a diretora de apenas 42 anos já havia feito por aí. Uma surpresa grata, como veremos à frente.
Retrocedamos a Rossellini. Pináculo essencial da história cinematográfica no pós-guerra, o cineasta italiano já havia dirigido alguns dos filmes mais marcantes de sua carreira e do cinema mundial quando conheceu e se apaixonou (o que convenhamos, não é nada difícil) pela atriz sueca de grande sucesso em Hollywood, por volta de 1950. Expoente máximo do neorrealismo italiano, seus métodos prezavam por uma pessoalidade marcante, se valendo inclusive de locações reais e improviso nos diálogos dos filmes. Sua Trilogia da Guerra (composto por Roma, Cidade Aberta, Paisà e Alemanha, Ano Zero), são alguns dos filmes que melhor adentram na crueldade de um cenário devastado, e o que a violência ali exposta tira de nossa humanidade. As obras com Ingrid, no entanto, saem do olho do furacão para ver todas essas questões de maneira distanciada. O foco, de um modo ou de outro, se volta ao subjetivo, ao que ocorre no âmago. A guerra havia passado, há de se lidar com as consequências. São filmes que se relacionam de uma maneira muito forte com as questões do espírito, do psicológico e do catolicismo, sem se prender a regramentos cerceadores.
Stromboli, assim como o vulcão de mesmo nome que toma a paisagem no longa, é eruptivo e incontrolável. A figura sublime de Ingrid Bergman contrasta a rudez da miséria de uma ilha na Sicília relegada ao abandono. Uma das experiências mais transcendentais e metafísicas que o cinema já me proporcionou. A crença, a resistência, o colapso interno e a incomunicabilidade, são temas que, de alguma forma, retornarão nos filmes seguintes da dupla. A obra que veio depois, Europa ‘51, representa quase que um corpo estranho nessa trilogia simbólica. Uma socialite perde o filho e se envolve profundamente no amor ao próximo; história de santidade mundana. Rossellini dirigiu dois anos antes um filme sobre São Francisco de Assis, e pareceu intrigado no que representaria a experiência franciscana em seu tempo, advinda da fonte mais absurda: a burguesia. Quando penso na obra, suas dimensões ainda não são de meu pleno conhecimento. É de uma condução bárbara a forma como Rossellini tira a rica insensível e nos entrega alguém de preocupação tão pura para com a humanidade, sem que nos déssemos conta de como isso ocorreu. É mesmo um grandioso mistério de fé. Não há explicações beatas, missionarismo, ideologia política ou interesse futuro, é tão somente um ser humano com amor imensurável para com o irmão. O bem sem olhar a quem levado à última instância, o sacro condenado pelo sacrilégio que corrompe a sociedade.
Essencialmente, Lazzaro Felice, de Alice Rohrwacher, parte de um pressuposto semelhante. Como seria um santo nos dias de hoje? A mera formulação é por si só uma redução. Campesinos explorados no interior da Itália contemporânea vivendo como seus antepassados, escravos da terra e de quem comanda ela. Dentre eles, surge um rapaz inocente como um cordeiro, que dá a outra face e perdoa quem o fere (ou talvez não possua a consciência de que é ferido?). Lazzaro é a representação de vários dos ideários do próprio Cristo. O catolicismo, como a Rossellini, exerce papel central dentro da filmografia da diretora, seja em suas vias simbólicas ou contestadoras. Seu primeiro longa-metragem, Corpo Celeste, lembra o fascinante La Niña Santa, de Lucrecia Martel, lançado alguns anos antes. Uma pré-adolescente se vê em meio às ambiguidades do amadurecer e da própria Igreja, contexto em que é fortemente inserida. A relação contrastante da diretora com a religião pode ser entendida na própria constatação de que a Sé não é tão una quanto aparenta; se faz necessário retornar a um cristianismo puro.
Lazzaro e Irene (a personagem de Bergman em Europa ‘51) soam exatamente como figuras de santidade do catolicismo, mas desprovidos de qualquer ambição eclesiástica. Os dois diretores estão interessados num olhar mais nu, desvestido de títulos mundanos, preocupações para com a posterioridade, e utilizam justamente o prendimento desses indivíduos ao mundo real, ao sofrimento que ocorre aqui e agora, para formular seus santos do dia-a-dia, humanistas passionais e puros invioláveis. Se esses aspectos estabelecem, entre os dois filmes, pontes, há também abordagens que os separam. Ou melhor, fomentam a obliquidade de uma conversa que se expande em muitas vias. Uma diferença gritante está na realidade social oposta dos dois personagens. Irene é a rica que após um evento trágico tem sua vida transformada. Lazzaro é oprimido desde seu nascimento e não é inteirado da violência que sofre em múltiplos âmbitos. Irene é consciente de sua mudança, Lazzaro não entende como sua pureza o difere dos demais. Os diretores exploram isso de maneira curiosa. Rohrwacher privilegia a vastidão do campo, a paisagem rural, perdida no tempo, de uma Itália pobre e esquecida. Rossellini não é menos denunciador em sua encenação, mas parece prezar, assim como Irene, por uma concretude mais tangível da vida dos que sofrem. O simbólico surge nas duas narrativas de modos antagônicos: se Alice abusa de seus símbolos para atingir o inatingível, Roberto os usa como confirmação da incompreensão social perante o elevado. Caminhos diferentes para chegar a um pé de igualdade.
Voltemos a La Chimera. Depois de assistir alguns filmes da diretora (dos quais faltou destacar Le Pupille, um curta maravilhoso), assisti enfim ao longa. Foi uma experiência estranha. O filme tinha acabado de sair pelos meios digitais (de acesso irrestrito, rs), no dia anterior, acredito. Geralmente espero um tempo maior para que legendas melhor revisadas saiam, porém, como estava muito curioso, assisti mesmo assim. Um homem despedaçado, um amor perdido, uma gangue desajeitada, figuras e histórias enterradas, à espera da luz do sol. É um filme que, talvez ainda mais do que os outros da diretora, se alicerça inteiramente na força espiritual da narrativa, entremeando entre passado, presente e futuro, bem como entre a vida e a morte. Por vezes, essa confusão beira de maneira exclusiva o sensível, pouco interessando ao mundo real. A obra é, por si só, de uma absorção inorgânica. O fato de estar faltando legendas e eu ter assistido à maior parte da projeção apenas na língua original ajudou a passar essa impressão, com certeza. Meu italiano é, pasmem, macarrônico. Só me sai nonna, pasta e um ou outro verso de canções da artista italiana Mina. Mas me agradou ver esse filme que confia tão piamente na força de suas imagens e sons de un altro mondo, mesmo que o significado das palavras não me fossem cognoscíveis em plenitude.
Já o terceiro filme de Rossellini com Bergman, Viagem à Itália, me tomou por inteiro sem fazer cerimônia. Assisti há poucos dias e sigo impactado em absoluto. Um casal em desmoronamento passa um período em território italiano para resolver assuntos administrativos. O pontapé inicial do cinema moderno, como afirmou Truffaut. Um longa assombroso, cheio de segredos e coisas não ditas, escondidas em esculturas, cemitérios, bebidas, cigarros, solo e língua italiana. E o milagre, como escreveu Rohmer em sua crítica para Cahiers. “Seria a tarefa do cinema trazer à arte uma noção cujas grandes riquezas o gênio humano ainda não soube descobrir: a noção de milagre?”. Filme miraculoso. Como me agrada pensar o cinema dessa maneira! A arte cinematográfica como instância de realização do milagre, seu fazer sentir em nós, humanos. Impossível não se emocionar com a procissão sacra passando e impedindo o casal de encerrar o seu amor, dando, pelo contrário, a vida em abundância. Onde havia incompreensão, entendimento. Ingrid Bergman e George Sanders nos braços um do outro, e a multidão continua a passar, seguindo la Madonna.
A influência de Viagem à Itália é sentida com clareza em La Chimera. Em entrevista ao Letterboxd, Alice Rohrwacher citou o filme de 1954 como “profundamente ligado” ao seu, dando ênfase à liberdade de ambos os filmes na busca pelos muitos níveis que carregam. Imagens gélidas, petrificadas, envoltas no mais denso sentimento. O diálogo que estabelecem entre si é obtuso, intermitente. Quase que uma conversa jogada aos céus, levada pelo vento, deturpada, tomada por uma nova interpretação. É claro que, diretamente, Viagem à Itália não bebe dos filmes que influencia, mas é metamorfoseada pelo público, que o consome com o olhar cheio de tudo que leva consigo. Isso vale para La Chimera, mas também O Desprezo, de Godard, ao qual o filme de Rossellini parece espreitar cada quadro. Contudo, não tomemos por unilateral qualquer que seja a discussão. É, afinal, uma conversa. Do velho com o novo e vice-versa. Não se fazem filmes como antigamente, apenas Por antigamente. Diálogos deliberados, soltos, cruzados, ao escuro ou sem resposta. A filmografia de Roberto segue e seguirá imperecível, incontornável. Muito graças às releituras, negações e concordâncias, de quem vem a posteriori, como Alice. Cinema reverbera na transgressão e tradução mútua, uma linguagem como fim em si mesma. E esses filmes, ao seu modo, falam uma só língua — mesmo que seja apenas a italiana.